Totò (Antonio de Curtis)
A rasoira
* * *
Há o costume, desde que me lembro,
de irmos ao cemitério para rezar
pelos defuntos, no dia 2 de Novembro,
dever a que ninguém pode faltar.
Todos os anos, eu cá neste dia,
quando se dá täo triste ocorrência,
também vou com flores enfeitar
a campa da querida tia Vicência.
Este ano aconteceu-me uma história,
depois de ter feito a triste homenagem...
(Que medo tive, minha Nossa Senhora!)
mas lá consegui arranjar coragem.
Oiçam-me bem, foi esta a aventura:
estava quase na hora de fechar,
e observando uma ou outra sepultura,
vinha eu, com a visita a terminar.
«AQUI REPOUSA EM PAZ O NOBRE MARQUÊS
SENHOR DE CARABAS E RATAPUM,
VALENTE HERÓI POR MUITA E MUITA VEZ,
MORTO EM MAIO DE 1931.»
Brasäo e coroa por cima de tudo...
e por baixo deles uma cruz;
ramos de rosas com lista de luto:
mil velas e velinhas a dar luz.
Mesmo ao pé do túmulo do senhor
havia uma campa rasa pequenina
abandonada, sem sequer uma flor;
e por sinal somente uma cruzinha.
Por cima da cruz tosca mal se lia:
«ENJEITADO GENNARO, VARREDOR».
Ao olhá-la, que pena me fazia
tal morto sem um só sinal de dor.
É a vida, fiquei eu a pensar...
Uns tiveram tanto e outros nada!
Podia este desgraçado esperar
que até no outro mundo fosse enjeitado?
Enquanto pensava nesta sorte
näo percebi como passou o tempo:
dei por mim era quase meia-noite,
morto de medo, fechado lá dentro.
De repente, o que vejo eu ao longe?
Duas sombras que vêm a mim direito...
E pensei: estarei já a ter visöes?
Estou doido, a sonhar, ou é devaneio?
Qual fantasia? Era o marquês:
de luneta, cartola e casacäo;
e a seu lado vem um pobre ...
|
|
|
|
|
|